domingo, 18 de março de 2012

A Luta Continua

A luta continua
por Leila Jinkings


"Cada paralelepípedo da velha cidade
essa noite vai se arrepiar
Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais" [1]

O livro “1968- o ano que não terminou” é uma leitura imprescindível para a compreensão daquele ano que marcou para sempre a vida no mundo. Zuenir Ventura relata os acontecimentos no Brasil, fazendo com que o leitor compreenda a conjuntura, naquele momento, na vida dos brasileiros. Diferente de outros relatos, ele não desce à cozinha, preocupa-se com os fatos mais relevantes para a compreensão de quem lê, com isenção e profissionalismo, sem, contudo, colocar-se fora deles.
Nas passagens iniciais, uma festa de reveillon, há imagens hilárias das loucuras daquele tempo de “É Proibido Proibir”, como a impagável cena de um casal que chega à festa e pede – para começar - dois uísques. Recebe, incrédulo, duas garrafas de legítimo scotch. Assim, segue-se o livro todo: introduzindo o leitor no clima de cada momento que relata, fazendo o leitor sentir-se parte daquilo tudo.
O autor passeia pelos acontecimentos que se desenrolam no mundo, as mudanças que vão se alastrando, o desejo de liberdade, o repúdio ao autoritarismo. Com o foco no Brasil, ele segue introduzindo o leitor no clima de descontração das conversas de boteco ou dos encontros de intelectuais e artistas. Descreve os novos costumes introduzidos, da moda ao comportamento sexual.
Aos poucos o clima vai pesando. Começa-se a perceber a perversidade e a irresponsabilidade das mudanças produzidas no Brasil. Aqui, diferente da Europa ou da América do Norte, vivia-se uma ditadura militar. A extrema direita começava a assumir o controle da ditadura, o que se consolida em uma sexta feira 13 do mês de dezembro daquele ano.
O livro pincela a discussão filosófica e política entre os "reformistas" e os "revolucionários". As lideranças do movimento estudantil, sindical e intelectual, alinhavam-se com uma das posições. Liam Marx, Marcuse, Mao, Ho Chi Min, Althusser, Che Guevara, Debray. As diferenças eram percebidas apenas por quem estava alinhado. Para as massas o importante mesmo era estar contra a repressão e a ditadura.
O teatro e a música, que já vinham muito mal vistos pelos militares desde o golpe de 64, sentem o peso da censura e da repressão. A estupidez da “milicada” era, muitas vezes, uma fonte de inspiração para jornalistas, como ilustra o seguinte texto do Correio da Manhã, de Brasília:
Brasília assistiu a um espetáculo estranho. Viaturas do DOPS postaram-se diante de um teatro (...). Todo aquele aparato se voltava contra o elenco de "Um bonde chamado desejo", de Tennessee Williams, ou seja, contra quatro atrizes e três atores. A peça, depois de exibida à exaustão no Rio, São Paulo, Bahia, Belo Horizonte, sem falar no resto do mundo, ofendeu a sensibilidade de um censor, que exigiu o corte das palavras gorila, vaca e galinha. O censor se chama Leão. Talvez se julgue, portanto, o rei dos animais, com direito a vetar o nome de alguns de seus súditos. Em verdade esse Leão sugere outro animal, de orelhas compridas e zurrante.[2]

Da mídia, Zuenir oferece alguns trechos reveladores da estirpe de profissionais, da sua criatividade e da sua respeitável autonomia. Do inicio ao fim do livro, ele pinça notinhas e artifícios utilizados por aquela mídia de então, em editoriais, reportagens e até miscelâneas. É o caso da histórica edição do JB, no dia seguinte ao AI-5. Uma obra de arte, mereceria um fac-símile de página inteira. Recheada de gozações, começava por usar uma linguagem já superada por reforma gráfica e redacional de dez anos atrás. Usando adjetivos e clichês, passava pela dubiedade nas legendas das fotos de capa e culminava com a meteorologia no alto da 1ª página, no verão escaldante:
"Tempo negro. Temperatura sufocante.
O ar está irrespirável.
O país está sendo varrido por fortes ventos."

Zuenir Ventura entrevistou personagens como Vladimir Palmeira, Zé Dirceu, Chico Buarque, Franklin Martins, Helio Pelegrino, Flávio Rangel, Zé Celso e muitos outros. Ouviu também personagens que se escondem atrás do anonimato, geralmente os que estavam a serviço da ditadura, e lança mão de vasta documentação. Foi uma pesquisa de dez anos, ele conta.
O relato é leve e bem humorado. Longe de ser superficial, o seu mérito mais importante é o resgate fiel do que representou o ano de 1968 para a vida do país. Não há como permitir que os jovens ignorem esses acontecimentos e os adultos o esqueçam. Hoje, 40 anos depois, além de golpistas arrependidos ao jogo acabado, assistimos alguns personagens menosprezando aquela luta libertária. Será que esqueceram todo o terror que foi imposto à população? É o sociólogo Emir Sader que pergunta em artigo de maio deste ano de 2008[3]:
 Foi o maior crime da história republicana do Brasil. Se mantiveram no poder durante mais de duas décadas. Prenderam, torturaram, assassinaram, ameaçaram, transformaram o Estado num serviço de controle dos cidadãos, de informações e de repressão. Fizeram do Brasil uma ditadura durante 21 anos e saíram impunemente. Se deram o direito de decretar, eles mesmos – algozes - a lei de anistia, que tentava igualar verdugos e vítimas.Quem foi punido por todos os crimes realizados sob o abrigo da ditadura militar? Quanto os familiares das vítimas puderam saber do que aconteceu com seus parentes? Quem pagou as culpas pelos crimes da ditadura militar?
 O coronel Jarbas Passarinho, um dos articuladores mais ativos do golpe militar, hoje tenta turvar a história. Com o estímulo da mídia, velha parceira da aventura militar, e gozando da benevolência com que as pessoas costumam tratar os anciãos, ele fala despudoradamente de democracia, ética e moral. Só engana a quem não viveu essa história ou não se aprofundou nos acontecimentos. São fatos que remontam a 62 e seguem até a abertura democrática, em 1965, quando o número de democratas cresceu inversamente proporcional ao de ex-golpistas. Como encontra quem o ouça e até quem se confunda, o linha-dura discorre, em artigos prolixos, sobre democracia e direitos fundamentais. A propósito, uma notinha no blog de Afonso Klautau, dá um tom diferente dos que condescendem com o coronel:
Para o Coronel PassarinhoNão gosto do senhor e, pelo que sei, o senhor não gosta de mim.Mas, meu pai gostava - tanto que lhe deu seu primeiro emprego civil - meu irmão mais velho, o Baim, também gosta.Pai, irmão mais velho e padrinho como o Baim, a gente cala a boca quando eles falam.Hoje, peço perdão ao Papai e ao Padrinho, para dizer que, coronel, o senhor é um hipócrita.No seu artigo de hoje do Liberal, o sub-título é o seguinte: "o rodízio no poder é essencial á democracia, bem assim o respeito pelos direitos fundamentais".E o senhor coronel assina assim: governador do Estado, senador e ministro de Estado de quatro governos.Todos os cargos da ditadura que mais desrespeitou o rodízio no poder.Para citar um pensador ilustre que não lembro mais quem é : "às favas, os escrúpulos"......................sem crase.[4]

A frase citada por Afonso é do Coronel Jarbas Passarinho e foi proferida no ato oficial mais covarde e anticonstitucional da ditadura militar, que deu sustentação a todo tipo de arbitrariedade, permitindo a prisão de suspeitos, exonerando juízes, cassando deputados, expulsando estudantes da universidade e da escola pública, suspendendo os direitos civis. Na reunião solene de aprovação do Ato Institucional nº.5, de vinte e dois presentes, como relata Zuenir, apenas um manifestou-se contrário: Pedro Aleixo, o vice presidente do ditador Costa e Silva. O falante coronel Passarinho, foi um dos quatro ministros, citados por Zuenir, que quiseram dar o seu show, tentando roubar a cena. Além de votar favoravelmente, o entusiasmado coronel, fez questão de se pronunciar, vomitando essa preciosidade citada ("...às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência.” [5].
O AI-5, lamenta o autor do livro, durante os dez anos de vigência, puniu 1.607 cidadãos, incluído um grande contingente de pensadores e criadores, proibiu 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, dezenas de programa de radio, 100 revistas, mais de 500 letras de música e até cenas de telenovela.
Nos 21 anos da ditadura militar, contabiliza-se 400 mortos e desaparecidos, além de milhares de torturados. Não aceitemos que o Brasil se torne o país da desmemória, conheçamos e aprendamos as lições da história, para que jamais se repita.

Leila Jinkings
Brasília, maio de 2008


Referências:
ZUENIR, VENTURA. 1968 - O Ano Que Não Terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
OLIVEIRA, ALFREDO. A Partir da Ilha. Belém, Cultural Cejup, 1991.
Blog do Emir, disponível em http://www.cartamaior.com.br/templates/blogMostrar.cfm?blog_id=1&alterarHomeAtual=1, acessado em 16 de maio de 2008.
Blog do AK





[1] Música: Vai Passar, de Francis Hime e Chico Buarque, 1984

[2] Zuenir, 1988. pp. 96
[3] Carta Maior, Blog do Emir
[4] disponível em 
http://akaamazonia.blogspot.com.br/2007/12/para-o-coronel-passarinho-no-gosto-do.html , em 01 de dezembro de 2007.
[5] Zuenir, 1988. pp 282/283.

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